sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Ser alfabetizado vai muito além de usar códigos

por: Ana Cássia Maturano especial para o G1, em São Paulo, 04/11/10


Ler e escrever têm a função de comunicar algo. No início do aprendizado da leitura, a criança apenas decodifica o texto.




Uma das exigências para que uma pessoa ocupe um cargo eletivo é que seja alfabetizada. Para tanto, deve apresentar um comprovante de sua escolaridade ou uma declaração escrita por ela própria. Sem poder comprovar a escolaridade, o deputado mais votado do país Francisco Everardo Oliveira Silva, o Tiririca, apresentou uma declaração de próprio punho, contestada pelo Instituto de Criminalística. Diante disso, foi denunciado à Justiça comum e eleitoral como possível analfabeto, podendo vir a perder o cargo. A Justiça poderá marcar uma audiência para que ele prove o contrário através de uma prova de leitura e escrita. Esta prova consiste na leitura em voz alta de um texto simples, sem ter que mostrar a compreensão que teve dele; e na realização de um ditado, quando deve escrever o que ouve, não sendo levadas em conta a grafia ou ortografia corretas. Ou seja, para uma pessoa ser considerada alfabetizada basta que seja um codificador ou decodificador de palavras e textos.

Ser alfabetizado vai muito além de usar códigos. Pessoas assim são apenas analfabetos funcionais, escrevem e leem, porém são incapazes de usar essas habilidades na sua vida. Melhor 
dizendo, são incapazes de dar sentido para aquilo que escrevem e leem. Ler e escrever têm a função de comunicar algo. A prova em questão só terá valor para avaliar a habilidade leitora se o que for lido fizer sentido e comunicar algo para o leitor. Para isso, é necessário que se verifique o entendimento feito do texto. Quem acompanha uma criança em seus primeiros anos escolares observa que muitas vezes ela lê uma história, por vezes curta e simples, mas não consegue compreender o que se passa nela. Isso se deve ao fato de que no início do aprendizado da leitura ela nada mais faz que decodificar o texto. Quando esta capacidade estiver desenvolvida, aí sim ela começará a dar um sentido maior ao que lê. Não podemos dizer que essa criança esteja alfabetizada.

O mesmo acontece com a escrita. Apenas escrever o que se ouve não faz da pessoa alguém capaz de produzir um texto legível e compreensível. Legível no sentido de usar regras comuns à linguagem escrita e com conteúdo com um mínimo de significado. Não apenas um amontoado de palavras. Não me parece que a prova a ser aplicada para que alguém demonstre ser alfabetizado revele algo nesse sentido. No Brasil e na América Latina, analfabeto funcional é aquele que tem mais de 20 anos e possui menos de quatro anos de estudo formal. No Canadá, a escolaridade mínima é de oito anos.

Esses critérios também são relativos. Principalmente quando observamos o desenvolvimento escolar efetivo de muitos daqueles que estudam vários anos nas nossas escolas públicas. Alguns terminam os quatro anos de estudos ainda analfabetos funcionais. Estar alfabetizado de maneira funcional – alfabetismo funcional – envolve a capacidade de usar a linguagem escrita de maneira efetiva, possibilitando que a pessoa se comunique, informando-se e expressando-se através dela. A alfabetização se dá pela vida toda. Fica difícil imaginar que uma pessoa que não seja funcionalmente alfabetizada consiga propor, editar ou revogar as leis de um país, como o deputado federal tem que fazer. Mais que uma questão política, essa questão envolvendo o deputado eleito mostra a confusão que ainda se faz sobre analfabetismo e alfabetismo, que tem ocultado o verdadeiro nível de alfabetização do nosso povo e impedido que o Brasil se desenvolva mais. 


(Ana Cássia Maturano é psicóloga e psicopedagoga)

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